O uso excessivo do celular tem sido amplamente debatido entre crianças e adolescentes, mas um grupo muitas vezes ignorado nessa discussão: o de idosos. Cada vez mais conectados, eles também podem enfrentar problemas decorrentes do tempo excessivo de tela, como impactos na saúde mental, dificuldades de sono e isolamento social.
Segundo especialistas, o dispositivo pode ser um aliado na terceira idade, permitindo comunicação com familiares, acesso a informações e estímulo cognitivo. No entanto, o uso sem moderação pode levar à redução de interações presenciais, sedentarismo e até vício digital. O especialista em Tecnologia e Inovação Arthur Igreja destaca que o design dos aplicativos é um fator determinante para o tempo prolongado de utilização. "Eles são desenhados para isso. Conforme diversos estudos, cada botão, cor e teste AB feito, é desenhado para estimular gatilhos do cérebro, ter liberação de dopamina, sensação de recompensa e estender o consumo", afirma.
A funcionária pública Gerusa Freire, 69 anos, por exemplo, não abre mão de jogos de smartphone. "Eu gosto de paciência, baralho e dominó. Vou jogando no caminho ao trabalho", explica. Como o trajeto dura cerca de uma hora, ela passa pelo menos duas horas por dia jogando. Para ela, o aparelho, por vezes, traz malefícios, pois distrai o usuário do ambiente ao redor. “Eu procuro ficar atenta ao movimento no ônibus, mas vejo gente que se perde. É muito perigoso”, diz.
O aposentado Valmir Ferreira, 66, mora em Santa Maria e onta que está sempre com o aparelho, principalmente para movimentações financeiras e consumo de notícias. "Preciso estar antenado com o que acontece no mundo. Se você não acompanha as informações, acaba se tornando vulnerável e desinformado, que é o pior", afirma. Ele acredita que o segredo está no equilíbrio: "É preciso ter regras, senão cai na armadilha de passar o dia inteiro no celular."
Jogo da memória
Esse entretenimento, no entanto, pode ter um preço. Priscilla Mussi, coordenadora de Geriatria do Hospital Santa Lúcia, alerta aos impactos cognitivos nos mais velhos. O dependência do celular pode afetar a memória e a concentração, tornando-os suscetíveis à distração e à dependência digital. "As informações são consumidas de maneira superficial e sem conexões emocionais. Isso faz com que sejam esquecidas rapidamente", pontua Mussi.
A aposentada Maria dos Santos, 73, moradora de São Sebastião, teve um episódio marcante que a fez repensar o manuseio do aparelho. "Uma vez fiquei tão entretida e nem vi a panela queimar a comida. Desde então, aprendi. Se não prestar atenção, vicia". Ela não se considera uma usuária intensa, a ponto de passar horas em frente à tela, mas admite que confere o celular em vários momentos do dia. "Fico no máximo 1h, mas meu aparelho tá sempre por perto", diz.
O perfil mais propenso ao uso excessivo na terceira idade inclui quem mora sozinho ou têm pouco suporte social. Esse comportamento interfere diretamente no sono e na socialização. "A luz azul emitida pelas telas deve ser evitada pelo menos duas horas antes de dormir a fim que a melatonina possa atingir seu pico e garantir um sono de qualidade. Entretanto, muitos idosos passam a noite no celular ou na televisão, especialmente porque o sentimento de solidão se intensifica nesse horário", observa a geriatra.
Otávio de Toledo Nóbrega, professor titular da Faculdade de Ciência e Tecnologias em Saúde, reconhece que a tecnologia é uma ferramenta importante para a comunicação, porém alerta que, quando o celular passa a substituir o convívio humano, pode agravar o isolamento social, um problema já comum na terceira idade. “O idoso limita o contato a mensagens curtas, deixando de lado interações mais ricas e significativas”, explica.
Segundo Mussi, os reflexos do superutilização dos dispositivos pode trazer impactos no bem-estar, tanto física quanto mental. "Na saúde física, o principal problema são as dores musculares e articulares por segurar o aparelho na posição errada por várias horas seguidas. Já no aspecto mental, vemos um aumento da ansiedade associado, além de uma piora cognitiva quando o telemóvel se torna a principal fonte de informação", explica.
O consumo de fake news e golpes digitais também preocupa, já que muitos idosos não tiveram contato com a tecnologia ao longo da vida e, por isso, podem ser mais vulneráveis. "Internet, smartphone, redes sociais e IA chegaram em um ponto avançado da vida deles. Isso soma-se às próprias questões da idade, visão, audição e até algumas questões cognitivas e torna o cenário bem preocupante", diz Igreja. Para reduzir esses riscos, ele aponta ser fundamental aumentar o conhecimento e a intimidade desse público com a tecnologia.
Mussi ainda recomenda algumas estratégias na redução da dependência digital, como manter o celular longe em momentos de socialização, ativar o modo 'hora de dormir' do aparelho e identificar gatilhos que levam a utilizaçaõ excessiva. Em casos graves, terapias como a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) e, se necessário, o administração de medicação podem ajudar no controle da compulsão digital. "Pequenas mudanças de hábito podem fazer uma grande diferença na qualidade de vida", conclui.
Além disso, Igreja destaca que a maior influência vem da convivência familiar. "Convivendo mais, conversando sobre isso. Muitas pessoas não têm nem consciência, mas estamos todos, em medida maior ou menor, desenvolvendo esse vício, essa hipervigilância e hiperconectividade", afirma.
Para Nobréga estratégias para reduzir o tempo de tela sem causar isolamento incluem desde o autogerenciamento, como estabelecer pausas para outras atividades, até soluções coletivas, como a participação em centros de convivência, trabalhos comunitários ou até o retorno ao mercado de trabalho. “O idoso tem que se orgulhar desses serviços e aproveitar as oportunidades de manter-se ativo e conectado ao mundo real”, conclui.